terça-feira, 3 de outubro de 2017

PAPEL DOS ESPÍRITAS PERANTE O ESPIRITISMO

Muitos espíritas acreditam que a filosofia espírita é mérito exclusivo dos Espíritos, cabendo a Kardec apenas sistematizar e organizar as comunicações provenientes do plano espiritual.





Este comportamento poderia sugerir aos adeptos do Espiritismo uma postura passiva e silenciosa diante das comunicações, sem a necessidade de investigação, análise e ponderações, uma vez que os Espíritos nos esclarecem com muita propriedade sobre os diversos temas que nos afligem. Nada poderia estar mais longe da verdade. Esse pensamento pode estar presente nas mentes dos espíritas em virtude da postura humilde de Kardec registrada nos prolegômenos de “O Livro dos Espíritos”. Lá ele afirma:
“Este livro é o repositório de seus ensinos (dos Espíritos). Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema. Nada contém que não seja a expressão do pensamento deles e que não tenha sido por eles examinado. Só a ordem e a distribuição metódica das matérias, assim como as notas e a forma de algumas partes da redação constituem obra daquele que recebeu a missão de os publicar.” [1]
É exato afirmar que a filosofia espírita provém dos Espíritos, no sentido de que ela não saiu da cabeça de um homem, como ocorre com as ciências da matéria. Mas não é exato afirmar que a única missão de Kardec era de publicar seus ensinos. Encontramos no próprio “O Livro dos Espíritos” as marcas de um genuíno pesquisador. Como ler “O Livro dos Espíritos” pulando a sua introdução? Não é lá como começamos a entender como a Doutrina começou a ser revelada? Não é lá que está registrado os primeiros fenômenos estudados por Kardec? Tudo começou com as mesas girantes, depois a cesta com o lápis, a prancheta e por fim a mão do médium. O que dizer do seu artigo “Ensaio Teórico das Sensações nos Espíritos”? Mesmo possuindo limitado conhecimento do funcionamento do cérebro, ele consegue responder com maestria como é possível os Espíritos terem as mesmas sensações e percepções humanas, como a dor, por exemplo, se são destituídos de corpo físico? Como explicar as diversas reclamações, de que foi testemunha, de frio e calor dos Espíritos?
Vou dar um exemplo para tornar clara a função daquele que investiga os fenômenos espíritas. É o próprio Kardec que explica:
“Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular, de que seguramente ninguém houvera suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos.” Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações ordinárias, deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía uma das fases da vida espírita; pode-se então estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação. O mesmo se deu com relação a todos os outros princípios da doutrina.” [2]
Apesar de muitos princípios terem sido resultados das observações dos fenômenos, existem outros promulgados pelos Espíritos que Kardec não teve como demonstrá-los ou evidenciá-los. Esse é o caso da reencarnação. Na questão nº 171 de “O Livro dos Espíritos” ele questiona: “Em que se funda o dogma da reencarnação?” [3] Os Espíritos, por sua vez, respondem: “Na justiça de Deus e na revelação…” [3]. Ou seja, é um princípio que foi agregado a filosofia espírita, resultado dos ensinos dos Espíritos, e não da observação dos fatos.
No entanto, ele utilizou de outros critérios para se certificar da veracidade das informações provenientes dos Espíritos como o Controle Universal do Ensino dos Espíritos.
Por sua vez, “O Livro dos Médiuns” é uma obra na qual Kardec expõe toda sua perspicácia na análise das comunicações. Esta obra possui um capítulo especial de mensagens apócrifas [4] atribuídas a espíritos de alta envergadura moral, como Jesus de Nazaré por exemplo. Ele fez este registro para que os espíritas saibam que ninguém está livre de receber comunicações mistificadoras, e que cabe aos espíritas discernir o falso do verdadeiro. É intrigante notar que esta recomendação seja proveniente dos próprios Espíritos, ou seja, são os próprios Espíritos que nos dizem que devemos analisar as mensagens oriundas do além, conforme segue a recomendação abaixo de Erasto:
“…fazei-a (Erasto refere-se às comunicações espíritas) passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom-senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.” [5]
Não há nesta argumentação nenhum propósito de desmerecer o trabalho extraordinário daqueles Espíritos que foram incumbidos de realizar a revelação espírita (São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luís, O Espírito de Verdade, Sócrates, Platão, etc..) [1], pois sem o concurso deles o Espiritismo careceria de seu caráter verdadeiro, ou seja, seria uma expressão equivocada das leis Divinas espirituais. Em contrapartida, uma postura criteriosa, cautelosa, investigativa, questionadora e abnegada por parte de Kardec garantiu, com boa dose de certeza, que as comunicações recebidas eram, de fato, provenientes de Espíritos superiores. O que estamos tentando esclarecer para o querido leitor é que o caráter científico da Doutrina é o que garante a origem divina da revelação espírita, sendo a ciência espírita de total responsabilidade dos espíritas, e não dos Espíritos. Portanto, a nossa postura diante dos fenômenos é que vai caracterizar o Espiritismo como ciência, a exemplo de Kardec.
O Fundador do Espiritismo discorre em seu brilhante artigo intitulado “Caráter da Revelação Espírita”, contido em sua obra “A Gênese” o papel dos homens perante os fenômenos. Ele considera que a revelação espírita tem duplo caráter: divino e científico. Esta passagem é tão esclarecedora que dispensa qualquer comentário.
“Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje que estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.” [6]

REFERÊNCIAS

1) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 74ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Prolegômenos.
2) KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. 38ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Capítulo I, Caráter da Revelação Espírita, ítem 15.
3) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 74ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira; Justiça da Reencarnação; Cap IV – Da Pluralidade das Existências, Parte Segunda – Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos.
4) KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução de Guillon Ribeiro. 64ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Comunicações apócrifas, Capítulo XXXI – Dissertações Espíritas, Segunda Parte – Das manifestações espíritas.
5) KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução de Guillon Ribeiro. 64ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Capítulo XX – Da Influência Moral do Médium, Segunda Parte – Das manifestações espíritas.
6) KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. 38ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Capítulo I, Caráter da Revelação Espírita, ítem 14.

Nenhum comentário:

Postar um comentário