Muitos espíritas acreditam que a filosofia espírita é mérito
exclusivo dos Espíritos, cabendo a Kardec apenas sistematizar e
organizar as comunicações provenientes do plano espiritual.
Este
comportamento poderia sugerir aos adeptos do Espiritismo uma postura
passiva e silenciosa diante das comunicações, sem a necessidade de
investigação, análise e ponderações, uma vez que os Espíritos nos
esclarecem com muita propriedade sobre os diversos temas que nos
afligem. Nada poderia estar mais longe da verdade. Esse pensamento pode
estar presente nas mentes dos espíritas em virtude da postura humilde de
Kardec registrada nos prolegômenos de “O Livro dos Espíritos”. Lá ele
afirma:
“Este livro é o repositório de seus ensinos (dos
Espíritos). Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos
superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional,
isenta dos preconceitos do espírito de sistema. Nada contém que não seja
a expressão do pensamento deles e que não tenha sido por eles
examinado. Só a ordem e a distribuição metódica das matérias, assim como
as notas e a forma de algumas partes da redação constituem obra daquele
que recebeu a missão de os publicar.” [1]
É exato afirmar que a
filosofia espírita provém dos Espíritos, no sentido de que ela não saiu
da cabeça de um homem, como ocorre com as ciências da matéria. Mas não é
exato afirmar que a única missão de Kardec era de publicar seus
ensinos. Encontramos no próprio “O Livro dos Espíritos” as marcas de um
genuíno pesquisador. Como ler “O Livro dos Espíritos” pulando a sua
introdução? Não é lá como começamos a entender como a Doutrina começou a
ser revelada? Não é lá que está registrado os primeiros fenômenos
estudados por Kardec? Tudo começou com as mesas girantes, depois a cesta
com o lápis, a prancheta e por fim a mão do médium. O que dizer do seu
artigo “Ensaio Teórico das Sensações nos Espíritos”? Mesmo possuindo
limitado conhecimento do funcionamento do cérebro, ele consegue
responder com maestria como é possível os Espíritos terem as mesmas
sensações e percepções humanas, como a dor, por exemplo, se são
destituídos de corpo físico? Como explicar as diversas reclamações, de
que foi testemunha, de frio e calor dos Espíritos?
Vou dar um exemplo para tornar clara a função daquele que investiga os fenômenos espíritas. É o próprio Kardec que explica:
“Passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito singular, de que
seguramente ninguém houvera suspeitado: o de haver Espíritos que se não
consideram mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem
perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente: “Há Espíritos
que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservam seus gostos,
costumes e instintos.” Provocaram a manifestação de Espíritos desta
categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos
quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se
aplicados às suas ocupações ordinárias, deduziu-se a regra. A
multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era
excepcional, que constituía uma das fases da vida espírita; pode-se
então estudar todas as variedades e as causas de tão singular ilusão,
reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco
adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é
temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. Foi assim que
a teoria nasceu da observação. O mesmo se deu com relação a todos os
outros princípios da doutrina.” [2]
Apesar de muitos princípios
terem sido resultados das observações dos fenômenos, existem outros
promulgados pelos Espíritos que Kardec não teve como demonstrá-los ou
evidenciá-los. Esse é o caso da reencarnação. Na questão nº 171 de “O
Livro dos Espíritos” ele questiona: “Em que se funda o dogma da
reencarnação?” [3] Os Espíritos, por sua vez, respondem: “Na justiça de
Deus e na revelação…” [3]. Ou seja, é um princípio que foi agregado a
filosofia espírita, resultado dos ensinos dos Espíritos, e não da
observação dos fatos.
No entanto, ele utilizou de outros
critérios para se certificar da veracidade das informações provenientes
dos Espíritos como o Controle Universal do Ensino dos Espíritos.
Por sua vez, “O Livro dos Médiuns” é uma obra na qual Kardec expõe toda
sua perspicácia na análise das comunicações. Esta obra possui um
capítulo especial de mensagens apócrifas [4] atribuídas a espíritos de
alta envergadura moral, como Jesus de Nazaré por exemplo. Ele fez este
registro para que os espíritas saibam que ninguém está livre de receber
comunicações mistificadoras, e que cabe aos espíritas discernir o falso
do verdadeiro. É intrigante notar que esta recomendação seja proveniente
dos próprios Espíritos, ou seja, são os próprios Espíritos que nos
dizem que devemos analisar as mensagens oriundas do além, conforme segue
a recomendação abaixo de Erasto:
“…fazei-a (Erasto refere-se às
comunicações espíritas) passar pelo crisol da razão e da lógica e
rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom-senso reprovarem.
Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só
teoria errônea.” [5]
Não há nesta argumentação nenhum propósito
de desmerecer o trabalho extraordinário daqueles Espíritos que foram
incumbidos de realizar a revelação espírita (São João Evangelista, Santo
Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luís, O Espírito de Verdade,
Sócrates, Platão, etc..) [1], pois sem o concurso deles o Espiritismo
careceria de seu caráter verdadeiro, ou seja, seria uma expressão
equivocada das leis Divinas espirituais. Em contrapartida, uma postura
criteriosa, cautelosa, investigativa, questionadora e abnegada por parte
de Kardec garantiu, com boa dose de certeza, que as comunicações
recebidas eram, de fato, provenientes de Espíritos superiores. O que
estamos tentando esclarecer para o querido leitor é que o caráter
científico da Doutrina é o que garante a origem divina da revelação
espírita, sendo a ciência espírita de total responsabilidade dos
espíritas, e não dos Espíritos. Portanto, a nossa postura diante dos
fenômenos é que vai caracterizar o Espiritismo como ciência, a exemplo
de Kardec.
O Fundador do Espiritismo discorre em seu brilhante
artigo intitulado “Caráter da Revelação Espírita”, contido em sua obra
“A Gênese” o papel dos homens perante os fenômenos. Ele considera que a
revelação espírita tem duplo caráter: divino e científico. Esta passagem
é tão esclarecedora que dispensa qualquer comentário.
“Por sua
natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo
tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da
primeira, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado
da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos
fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos
encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles
ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa
conhecer, hoje que estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda,
por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a
todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o
recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da
pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque
não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim,
porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega;
porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que
os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão,
instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio
as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação
espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos,
sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.” [6]
REFERÊNCIAS
1) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro.
74ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Prolegômenos.
2) KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. 38ª ed. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, Capítulo I, Caráter da
Revelação Espírita, ítem 15.
3) KARDEC, Allan. O Livro dos
Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 74ª ed. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira; Justiça da Reencarnação; Cap IV – Da
Pluralidade das Existências, Parte Segunda – Do mundo espírita ou mundo
dos Espíritos.
4) KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução de
Guillon Ribeiro. 64ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
Comunicações apócrifas, Capítulo XXXI – Dissertações Espíritas, Segunda
Parte – Das manifestações espíritas.
5) KARDEC, Allan. O Livro
dos Médiuns. Tradução de Guillon Ribeiro. 64ª ed. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira, Capítulo XX – Da Influência Moral do
Médium, Segunda Parte – Das manifestações espíritas.
6) KARDEC,
Allan. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. 38ª ed. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira, Capítulo I, Caráter da Revelação
Espírita, ítem 14.
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