Por Marcelo Henrique
Eis-nos, uma vez mais, às vésperas de
mais uma Páscoa. Nosso pensamento e nossa emoção, ambos cristãos,
manifestam nossa sensibilidade psíquica. Deixando de lado o apelo
comercial da data, e o caráter de festividade familiar, a exemplo do
Natal, nossa atenção e consciência espíritas requerem uma explicação
plausível do significado da data e de sua representação perante o
contexto filosófico-científico-moral da Doutrina Espírita.
Deve-se comemorar a Páscoa? Que tipo de celebração, evento ou homenagem é
permitida nas instituições espíritas? Como o Espiritismo visualiza o
acontecimento da paixão, crucificação, morte e ressurreição de Jesus?
Em linhas gerais, as instituições espíritas não celebram a Páscoa, nem
programam situações específicas para “marcar” a data, como fazem as
demais religiões ou filosofias “cristãs”. Todavia, o sentimento de
religiosidade que é particular de cada ser-Espírito, é, pela Doutrina
Espírita, respeitado, de modo que qualquer manifestação pessoal ou,
mesmo, coletiva, acerca da Páscoa não é proibida, nem desaconselhada.
O certo é que a figura de Jesus assume posição privilegiada no contexto
espírita, dizendo-se, inclusive, que a moral de Jesus serve de base
para a moral do Espiritismo. Assim, como as pessoas, via de regra, são
lembradas, em nossa cultura, pelo que fizeram e reverenciadas nas datas
principais de sua existência corpórea (nascimento e morte), é
absolutamente comum e verdadeiro lembrarmo-nos das pessoas que nos são
caras ou importantes nestas datas. Não há, francamente, nenhum mal
nisso.
Mas, como o Espiritismo não tem dogmas, sacramentos,
rituais ou liturgias, a forma de encarar a Páscoa (ou a Natividade) de
Jesus, assume uma conotação bastante peculiar. Antes de mencionarmos a
significação espírita da Páscoa, faz-se necessário buscar, no tempo, na
História da Humanidade, as referências ao acontecimento.
A
Páscoa, primeiramente, não é, de maneira inicial, relacionada ao
martírio e sacrifício de Jesus. Veja-se, por exemplo, no Evangelho de
Lucas (cap. 22, versículos 15 e 16), a menção, do próprio Cristo, ao
evento: “Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes
da minha paixão. Porque vos declaro que não tornarei a comer, até que
ela se cumpra no Reino de Deus.” Evidente, aí, a referência de que a
Páscoa já era uma “comemoração”, na época de Jesus, uma festa cultural
e, portanto, o que fez a Igreja foi “aproveitar-se” do sentido da festa,
para adaptá-la, dando-lhe um novo significado, associando-o à
“imolação” de Jesus, no pós-julgamento, na execução da sentença de
Pilatos.
Historicamente, a Páscoa é a junção de duas festividades
muito antigas, comuns entre os povos primitivos, e alimentada pelos
judeus, à época de Jesus. Fala-se do “pesah”, uma dança cultural,
representando a vida dos povos nômades, numa fase em que a vinculação à
terra (com a noção de propriedade) ainda não era flagrante. Também
estava associada à “festa dos ázimos”, uma homenagem que os agricultores
sedentários faziam às divindades, em razão do início da época da
colheita do trigo, agradecendo aos Céus, pela fartura da produção
agrícola, da qual saciavam a fome de suas famílias, e propiciavam as
trocas nos mercados da época. Ambas eram comemoradas no mês de abril
(nisan) e, a partir do evento bíblico denominado “êxodo” (fuga do povo
hebreu do Egito), em torno de 1441 a.C., passaram a ser reverenciadas
juntas. É esta a Páscoa que o Cristo desejou comemorar junto dos seus
mais caros, por ocasião da última ceia.
Logo após a celebração,
foram todos para o Getsêmani, onde os discípulos invigilantes
adormeceram, tendo sido o palco do beijo da traição e da prisão do
Nazareno.
Mas há outros elementos “evangélicos” que marcam a
Páscoa. Isto porque as vinculações religiosas apontam para a quinta e a
sexta-feira santas, o sábado de aleluia e o domingo de páscoa. Os
primeiros relacionam-se ao “martírio”, ao sofrimento de Jesus – tão bem
retratado neste último filme hollyodiano (A Paixão de Cristo, segundo
Mel Gibson) –, e os últimos, à ressurreição e a ascensão de Jesus.
No que concerne à ressurreição, podemos dizer que a interpretação
tradicional aponta para a possibilidade da mantença da estrutura
corporal do Cristo, no post-mortem, situação totalmente rechaçada pela
ciência, em virtude do apodrecimento e deterioração do envoltório
físico. As Igrejas cristãs insistem na hipótese do Cristo ter “subido
aos Céus” em corpo e alma, e fará o mesmo em relação a todos os
“eleitos” no chamado “juízo final”. Isto é, pessoas que morreram, pelos
séculos afora, cujos corpos já foram decompostos e reaproveitados pela
terra, ressurgirão, perfeitos, reconstituindo as estruturas orgânicas,
do dia do julgamento, onde o Cristo, separá justos e ímpios.
A
lógica e o bom-senso espíritas abominam tal teoria, pela impossibilidade
física e pela injustiça moral. Afinal, com a lei dos renascimentos,
estabelece-se um critério mais justo para aferir a “competência” ou a
“qualificação” de todos os Espíritos. Com “tantas oportunidades quanto
sejam necessárias”, no “nascer de novo”, é possível a todos progredirem.
Mas, como explicar, então as “aparições” de Jesus, nos quarenta dias póstumos, mencionadas pelos religiosos na alusão à Páscoa?
A fenomenologia espírita (mediúnica) aponta para as manifestações
psíquicas descritas como mediunidades. Em algumas ocasiões, como a
conversa com Maria de Magdala, que havia ido até o sepulcro para
depositar algumas flores e orar, perguntando a Jesus – como se fosse o
jardineiro – após ver a lápide removida, “para onde levaram o corpo do
Raboni”, podemos estar diante da “materialização”, isto é, a utilização
de fluido ectoplásmico – de seres encarnados – para possibilitar que o
Espírito seja visto (por todos). Igual circunstância se dá, também, no
colóquio de Tomé com os demais discípulos, que já haviam “visto” Jesus,
de que ele só acreditaria, se “colocasse as mãos nas chagas do Cristo”. E
isto, em verdade, pelos relatos bíblicos, acontece. Noutras situações,
estamos diante de uma outra manifestação psíquica conhecida, a
mediunidade de vidência, quando, pelo uso de faculdades mediúnicas,
alguém pode ver os Espíritos.
A Páscoa, em verdade, pela
interpretação das religiões e seitas tradicionais, acha-se envolta num
preocupante e negativo contexto de culpa. Afinal, acredita-se que Jesus
teria padecido em razão dos “nossos” pecados, numa alusão descabida de
que todo o sofrimento de Jesus teria sido realizado para “nos salvar”,
dos nossos próprios erros, ou dos erros cometidos por nossos ancestrais,
em especial, os “bíblicos” Adão e Eva, no Paraíso. A presença do
“cordeiro imolado”, que cumpre as profecias do Antigo Testamento, quanto
à perseguição e violência contra o “filho de Deus”, está flagrantemente
aposta em todas as igrejas, nos crucifixos e nos quadros que relatam –
em cores vivas – as fases da via sacra.
Esta tradição
judaico-cristã da “culpa” é a grande diferença entre a Páscoa
tradicional e a Páscoa espírita, se é que esta última existe. Em
verdade, nós espíritas devemos reconhecer a data da Páscoa como a grande
– e última lição – de Jesus, que vence as iniqüidades, que retorna
triunfante, que prossegue sua cátedra pedagógica, para asseverar que
“permaneceria eternamente conosco”, na direção bussolar de nossos
passos, doravante.
Nestes dias de festas materiais e/ou
lembranças do sofrimento do Rabi, possamos nós encarar a Páscoa como o
momento de transformação, a vera evocação de liberdade, pois, uma vez
despojado do envoltório corporal, pôde Jesus retornar ao Plano
Espiritual para, de lá, continuar “coordenando” o processo depurativo de
nosso orbe. Longe da remissão da celebração de uma festa pastoral ou
agrícola, ou da libertação de um povo oprimido, ou da ressurreição de
Jesus, possa ela ser encarada por nós, espíritas, como a vitória real da
vida sobre a morte, pela certeza da imortalidade e da reencarnação,
porque a vida, em essência, só pode ser conceituada como o amor, calcado
nos grandes exemplos da própria existência de Jesus, de amor ao próximo
e de valorização da própria vida.
Nesta Páscoa, assim, quando
estiveres junto aos teus mais caros, lembra-te de reverenciar os belos
exemplos de Jesus, que o imortalizam e que nos guiam para, um dia,
também estarmos na condição experimentada por ele, qual seja a de
“sermos deuses”, “fazendo brilhar a nossa luz”.
Comemore, então, meu amigo, uma “outra” Páscoa. A sua Páscoa, a da sua transformação, rumo a uma vida plena.
(*) Marcelo Henrique, Doutorando em Direito e Assessor Administrativo
da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo - ABRADE.
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